Às vezes eu saía pra caminhar no parque e ficava observando. Observava a senhora sentada no banco de madeira dando comida aos passarinhos, bem coisa de filme mesmo. Observava o cara gordo sentado do lado da senhora que pensava que conseguia disfarçar a direção do olhar tapando a cara com um jornal velho da semana passada. Mas todo mundo sabia que ele, na verdade, estava olhando as pernas da loira gostosa que ia todos os dias àquela mesma hora correr naquele parque com um rabo de cavalo no topo da cabeça, um shorts mais curto que o comprimento da palma da mão e sempre com fones de ouvido e música no volume máximo. Ela, ironicamente, tinha cara de quem curtia, sei lá, Maroon 5, RHCP, e se brincar até Beatles. Tinha o meu vizinho metódico e pontual fixado que acordava todos os dias às exatas 7:14 da manhã pra passear com aquele cachorro gordo esquisito que ele chama de Brutus. Acho que é um buldogue, tanto faz. Nunca parei pra prestar atenção nas classificações das coisas. Pra falar a verdade, muitas especificações me irritam. Voltando ao meu vizinho do cabelo penteado e mais encharcado de gel que o próprio pote: é, 7:14. Não 7:15, 7:14 mesmo. Ele nunca tem nada marcado em horas com minutos ímpares. Sem pegadinha, passei quase um mês tentando flagrar um atraso ou avanço de um minuto que fosse no toque do despertador desse cara. PÉÉN, falha. Não aconteceu. Aquela maldita musiquinha de elevador toca todos os dias às exatas 7:14 e eu não consigo acordar um minuto mais tarde há 4 meses, desde que me mudei pra cá. A mulher dele me traz biscoitos todas as quartas-feiras às pontuais 18:15 da tarde como pagamento pra eu ficar de olho em quem entra e sai do apartamento de cima, onde eles moram. Só pra esclarecer, ela tem fobia à compromissos em horas com minutos pares. É, eu sei. Talvez seja só coincidência, ou talvez os clichês sejam válidos e os opostos se atraiam e se completem mesmo. Sei lá. Como disse, não gosto de especificações, ditados, leis de newton, leis de sobrevivência ou qualquer coisa estabelecida. Nada que não mude. Aí então a mulher gorda pontual do meu vizinho de cabelo duro brilhoso esquisito e pontual resolveu mudar as coisas um pouco. Eu passei a gostar dela depois disso. E passei a gostar de Los Hermanos e de jogar Guitar Hero com a filha dela. E passei a gostar da filha dela. Mas isso veio depois.
Quarta-Feira, 9 de Outubro, 18:20 exatamente. Quatro batidas na porta. Primeiro fato escandalosamente anormal: 18:20. Seis horas e vinte minutos da tarde. V-i-n-t-e minutos. Segundo fato escandalosamente anormal: Quatro batidas na porta. Achei mesmo estranho e, involuntariamente, fiquei esperando pela quinta. Nada. Quatro batidas. Nem meia a mais. Nem 0,7 a mais. Quatro. 1, 2, 3, 4. Beleza, já deu pra entender, né? Quatro batidas. Levantei do sofá vermelho onde tinha passado a manhã afundado. Vista pra escada de acesso ao apê de cima. Sacaram a estratégia, né? Eu realmente gostava dos biscoitos. Mas eu nunca entendi qual a finalidade de se colocar uma janela com vista pra dentro do prédio. Beleza, sem discussões. Abri a porta. BÁ!
Eu juro que quase caí pra trás. Ruiva, branquinha, pequenininha, olhos verdes e dedos finos. Unhas com um esmalte descascado num tom que me parecia renda ou qualquer coisa assim. Esmalte cor de unha. “Oi.” — droga, fiz merda. Fiz merda, fiz mer — “Oi…” “Quer alguma coisa?” “Na verdade, minha mãe me pediu pra te trazer uns biscoitos e perguntar se alguma…como é que ela diz mesmo? Se alguma promís…” “Se alguma promíscua subiu as escadas hoje?” “É, isso aí mesmo.” “Pode dizer que não… Mas diz que uma ruivinha desceu aqui e quase me fez cuspir refrigerante quando eu abri a porta.” — Que merda eu tava fazendo? Sério. — “Como?” “Nada, não. Pode dizer que não subiu ninguém.” “Não… eu ouvi o que tu disse.” — Droga. — “Hm…Tá a fim de entrar?” “O quê?” “Tomar alguma coisa, sei lá. Ver um filme.” “(Risos) Não, valeu. Quem sabe outro dia. Tenho que levar o Brutus pra passear agora.” — Eu juro que nunca ouvi um risinho tão agudo que não fosse irritante. — “Às 18:31 da tarde?” “É, uai… Por quê?” “dezoito e trinta e um da tarde?” “Sim, senhor. Algum problema?” “Não, nada…Só achei que ele gostava mais de passear de manhã.” “Ele não gosta de nada, eu é que gosto de andar à tarde.” “Ah, entendi.” “Até.” “Só uma pergunta…” “Fala.” “Você vai me trazer os biscoitos a partir de agora?” “Se você quiser.” “Sem problemas.” — Abri um sorriso amarelo meio torto e me senti o maior idiota do mundo quando, pela primeira vez, me preocupei com essa coisa de espinafre entre os dentes. Eu não comia espinafre há o quê? 19 anos? Desde que eu comecei a escolher o que comer. Foi instinto, sei lá.
Uma semana depois, Quarta-Feira, 16 de Outubro, 17:50 da tarde. Eu não conseguia parar de checar o relógio. Resolvi pegar um livro. Folheei umas páginas, li umas duas ou três frases e me lembrei que nem tinha prestado atenção no nome do livro. “Não Conte a Ninguém”, dum cara chamado Harlan Coben. Resolvi ler a sinopse. Li no máximo umas seis linhas antes da primeira batida na porta. Quatro batidas. Levantei da poltrona num pulo, larguei o livro que caiu no chão e sei lá mais o que eu derrubei. Tropecei nos meus próprios pés umas quantas vezes até chegar à porta. Me apoiei na maçaneta e não consegui puxar a porta sem fazer um barulho estrondoso que entregasse meu nervosismo. Tô nem aí.
“Oi de novo” “De novo — Ela não parava de sorrir. Pensei que talvez tivesse gostado de mim. Tomara — er…cheguei em hora errada?” “Hora errada?” “É, sei lá.” “Não, não…chegou na hora de entrar.” Ela riu de novo. Que diabos tu quer comigo, guria? Vai parar com isso não? Já tá virando sacanagem. “Vou parecer muito oferecida se aceitar o convite?” “Não mais do que eu quero que seja.” — Dessa vez eu ri também. Foi uma sensação esquisita ela ter gostado da piada. “Onde é que eu coloco isso aqui?” “Deixa no braço da poltrona mesmo. A gente vai acabar comendo durante a conversa.” “Ah, é? E vamos conversar sobre o quê?” “Sei lá, uai.” Eu juro que fiquei olhando pra ela por uns cinco minutos até que resolvi me pronunciar. O silêncio tava me matando. “Aceita, sei lá, um refrigerante?” “Não tomo refrigerante…” “Chá? Café? Água?” “Café, pode ser.” “Então tu vai ter que fazer porque eu não sei. — Rimos. — Topa?” “Tem pó?” “Tem, sim.” E se eu te disser que sabia fazer café? Sempre soube. Sei lá, só pensei que ela acharia engraçado. Funcionou.
“Posso pegar gelo?” “Oi?” “Gelo. Posso?” “Claro que pode, mas gelo pra quê?” “Café, uai. Não gosta?” “Não que eu saiba.” “Já provou?” “Sei lá, devo ter provado. Não me parece nada legal.” “Prova aqui.” Ela jogou as pedras de gelo na xícara e estendeu-a pra mim de forma que quase passei a respirar café. “Não, fica tranquila. Pode tomar seu café aí.” Ela riu de novo. Puta merda. “Prova logo, estranho.” Ela estendeu a xícara de novo e eu quase que me senti obrigado pela minha própria vontade a engolir aquilo. O gosto era horrível. Eu gostei. “E aí?” “Até que é bom, estranha.” “Hm, sei — risos — essa cara aí de quem gostou. Imagina se não tivesse gostado.” Ela se apoiou de costas na pia e eu me apoiei do lado. “E aí, o que tava lendo?” “Eu?” “Obviamente.” “Nada, por quê?” “Vi um livro no chão da sala. Deu vontade de pegar, mas preferi ficar imóvel e te deixar constrangido.” “Hm…Harlan Coben.” “E o livro fala sobre o que?” “Não faço ideia. Li umas frases que juntas formariam meia página, no máximo.” Ela me encarou por uns segundos e resolveu voltar pra sala. Segurou minha mão e me arrastou até o sofá. A ficha de ela ter me pegado pela mão demorou a cair. O amor da minha então se sentou na minha poltrona e cruzou as pernas numa daquelas posições de borboleta de ginástica. “E aí?” “E aí o quê?” “O que tava fazendo antes de eu chegar?” “Ouvindo música, tomando refrigerante, o de sempre. E você, tava fazendo o que antes de vir pra cá?” “Nada, na verdade. Cochilando.” “Hm…” “Ei, tive uma ideia.” “Diz.” “Me diz as coisas que tu gosta, que eu te digo do que gosto.” “Não dá, tenho vergonha de falar…” “Então escreve.” “O quê?” “Escreve. Não sabe? É fácil. A gente normalmente aprende isso no pré.” — Não me segurei, tive que rir. E me senti envergonhado ao mesmo tempo, ela não parava de olhar. Me senti desconfortável e, simultaneamente, realizado. Sei lá, e se ela tivesse gostado de mim? E se a ruivinha dos dedos finos e pés pequenininhos estivesse gostando de mim? Que puta sorte. Eu ainda não tinha entendido qual o entusiasmo, mas não dava pra tirar o sorriso da cara. Era normal, não? Alguém gostar da gente? Costumava ser normal no colegial. No colegial, na faculdade, no trabalho, nas festas. Sempre tinha alguém a fim. Sei que o jeito como ela me olhava me deixava sem reação. E o cheiro dela, então? Ela cheirava a lilás e dia chuvoso. Suspirar perto dela dava uma vontade enorme de beijar. Eu tinha vontade de tudo com ela.
“Então, vamos? Me alcança um pedaço de papel e uma caneta.” “O.k. Vou pegar, espera.” A única coisa parecida que eu achei foi um bloquinho de notas do Batman. O que ela pensaria de um marmanjo de vinte anos de idade que usava um calção desbotado até os joelhos e chinelo havaianas, tinha a barba mal-feita e…gostava de desenho animado?
Ela achou engraçado. E riu que nunca vi. Ela ficava mais sexy naquela blusinha branca com renda no decote e jeans rasgado que a Angelina Jolie de lingerie.
Nunca caprichei tanto na caligrafia. Desenhei cada letra com a maior vontade do mundo de aquilo ficar legal. Mas nunca parei pra pensar nas coisas que gostava. Eu gostava um pouco de tudo. Ficou difícil escolher; coloquei só os mais comuns.
Ela me pareceu meio indecisa. Rabiscava e riscava o tempo todo, nunca vi.
“Terminou?” “Terminei.” “Beleza. Faz assim: me entrega o teu que eu te entrego o meu, tá?” “Tá. No três” “Tá. 1…2..— ela interrompeu a contagem e puxou o papel da minha mão e jogou o dela em cima de mim — tava demorando muito.” Os dois rimos. Antes de ler o que ela havia escrito, fiquei observando a reação dela ao ler minha lista.
“-Rock e indie rock
-Angelina Jolie
-Biscoitos
-Números pares
-Anabell
-Ruivas + Batman”
Ela sorriu em silêncio. Me senti aliviado e não consegui conter um sorriso também. Resolvi ler a lista dela.
“-Desenhos animados
-Rock e indie rock
-Chinelos havaianas
-Guitar Hero
-Estranhos
-Batman
-Anna Julia”
“Ei!” Sei que era uma proposta meio idiota, mas ela ia gostar. “Diz, estranho.” “Tenho uma coisa pra você, já volto!” “O que é?” “Surpresa.” Ela me olhou feliz. F-E-L-I-Z, com todas as letras. Deu pra ver. Um amigo meu uma vez tentou me ensinar a jogar esse tal de Guitar Hero. Odiei. Me estressei. Não tinha coordenação motora suficiente pra isso. Meus dedos nunca pressionavam a tecla certa e eu nunca acertava o tempo. Desisti. Eu tinha lá em casa um “quartinho da bagunça”. Guardava toda e qualquer tranqueira lá dentro. Esse amigo meu acabou deixando o Guitar Hero dele lá em casa e eu, já completamente cansado daquela coisa, joguei lá dentro do quartinho e esqueci que aquilo existia. Muita sorte. Acabei encontrando a “coisa” dentro duma caixa e tava tudo lá certinho. Nada faltando.
“Ei?” Ela já tava ficando impaciente, mas tava animada com a “surpresa”. “Achei! — gritei como resposta — tô indo!” Quando cheguei na sala, ela tava balançando a perna daquele jeito que todo mundo faz quando tá ansioso. Me senti importante. Coloquei a caixa no colo dela e pedi que abrisse. Ela gargalhou. Foi lindo.
“Não acredito — ela disse, ainda sorrindo. Eu não conseguia parar de olhar. — Sério mesmo?” “Sério — ri. Ela era tão ingênua rindo que parecia uma criança ganhando a primeira bicicleta. — Que tal?” “Tá querendo me conquistar, é?” “Algo me diz que eu já consegui.” “Besta. Nem chegou perto.” Preciso confessar uma coisa. Nunca amei tanto a sensação de ingenuidade. Eu era tão ingênuo perto dela que cheguei a achar que fosse uma pessoa apaixonável.
Conectei os cabos à tevê e depois de dez minutos tentando encontrar o menu, decidi que a melhor coisa a fazer era esquecer a cultura do cavalheirismo e pedir que ela arrumasse aquela coisa. “É assim mesmo? Tem certeza?” “É, sim. Deixa eu arrumar. Sei o que tô fazendo.” Sei que que ela sabia. Depois de algum tempo percebi que ela sempre sabia. Sabia que me torturava quando sorria pra mim, sabia que o jeito como caminhava, se vestia e até como se mexia despertavam em mim aquela coisa ridícula de amor platônico. Aquilo de achar que tudo que o outro faz é uma pista ou um sinal. E o melhor de tudo? Era. Uns anos depois eu descobri que até a caligrafia dos bilhetinhos que ela grudava na geladeira era de propósito. Ela conseguia colocar um pouco da sensualidade ingênua dela em casa coisa. “Tá. Faz aí.” “Pronto, senta aí.” Me sentei no sofá maior e ela sentou do meu lado de forma que as nossas pernas e os braços ficaram grudados. Preferi pensar que foi de propósito. “Antes de começar — eu juro que tava curioso — posso perguntar uma coisa?” “Claro que pode.” “Quem é Anna Julia?” Ela riu. E dessa vez ela riu de mim. Mas não num tom de deboche, ela não era desse tipo. Ela riu num jeito de quem tava adorando tudo aquilo. Ela riu num jeito de que tava apaixonada pela forma como eu era ingênuo perto dela. “É uma música.” “Uma música?” “É, uai. Nunca ouviu? Todo mundo já ouviu.” “Ouvi, não.” “Claro que ouviu… Nunca acreditei na ilusão, de ter você pra mim… — ela começou a cantarolar — me atormenta a previsão do nosso destino; eu passando o dia a te esperar; você sem me notar…quando tudo tiver fim, você vai estar com um caraaaaaaa, um alguém sem carinhooooooo, será sempre um espinhooooo, dentro do meu coooo-raaaaaaa-çãaaaaaao — ela deu uma pausa e me encarou nesse meio tempo. Mas dessa vez me olhou mais que dentro dos olhos. Ela me viu. — ô Anna Juliaaaaaaaaaaaaaaaaa — ela levantou num pulo e usou a mão como um microfone pra cantar o refrão. Acho que nunca ri tanto. Doía tudo; pernas, estômago, bochechas. Eu quase soube o que significava “morrer de rir”. Ela terminou a performance e eu bati palmas, ainda rindo. Ela gargalhava de perder o ar e eu juro que achei a coisa mais linda quando ela roncou no meio da risada. Ela ria tanto que mal conseguia se manter de pé. Veio tropeçando, se sentou no braço do sofá e foi descendo de costas até cair com a cabeça no meu colo. Ela fechou os olhos e apoiou a mão nas costelas, respirando devagar. Pensei, por um segundo, em beijar a testa dela. Sei lá, me deu uma vontade enorme. Mas ela acabou abrindo os olhos e levantando antes de eu criar coragem. Ela se sentou de novo e segurou meu pulso, procurando por um relógio. “São 18:25.” Sei que é meio esquisito, mas me senti feliz por ela ter ficado desapontada. “E daí?” “Tenho que levar o Brutus no parque.” “Ah…Tudo bem.” “Mesmo?” “Mesmo.” Ela se levantou, calçou os chinelos e foi em direção à porta. Me apressei em levantar e abrir a porta pra ela. “Senhorita.” Fiz reverência e ela correspondeu “Cavalheiro.” Ela saiu e eu não resisti. “Ei!” “Oi?” “O Guitar Hero fica pra amanhã?” “Claro!” “E mais uma coisa…” “Pode dizer.” “Não te deixo sair até confessar que está apaixonada por mim.” Aí o amor da minha vida riu e subiu as escadas. Eu não gostava de café com gelo, Guitar Hero ou Anna Julia, juro. Aí eu comecei a gostar de números pares. Ana Luísa K.